Fórum Mundial de Educação em Santa Maria: Considerações sobre suas Bases Políticas e Desafios Locais /globais. [1]
Cícero Santiago de Oliveira. [2]
Passadas algumas semanas do encontro que deu inicio ao Fórum Mundial de Educação (FME) em Santa Maria, com a constituição do Comitê Municipal, tornou-se inevitável a escrita de algumas considerações sobre as bases políticas desta movimentação global e os desafios que se colocam a todos (as) nós, trabalhadores (as), militantes da educação popular e agentes locais desta movimentação planetária. Não com a pretensão de avaliar o andamento das discussões, mas com o intuito de socializar reflexões e amadurecer a perspectiva eminentemente pedagógica das relações que estabelecemos até o momento, marcadas sobretudo pelo espírito da curiosidade, pelo desejo de aprender e fazer juntos (as) e pela busca da convivência democrática – este exercício difícil, necessário, que estamos todos (as) cotidianamente procurando exercer.
O texto é relativamente breve e, muito provavelmente, o (a) leitor (a) não necessitará de mais de 15 minutos para a sua degustação e crítica. Ao longo deste tempo, como recentemente denunciou o suíço Jean Ziegler, relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito a Alimentação, em todo planeta pelo menos 3 crianças ficaram cegas por falta de vitamina A e aproximadamente 128 morrerão em decorrência de doenças ligadas à desnutrição. [3]
Este fato expressa um dos grandes desafios colocados a todos (as) nós hoje: que tipo de educação fazemos e propomos em uma sociedade organizada de tal forma que, ao mesmo tempo em que tem a capacidade concreta de alimentar 12 bilhões de seres humanos, o dobro da população da Terra, mata diariamente cem mil pessoas de fome?
A fome, assim como as diversas formas de exploração e opressão existentes, como nos lembra o escritor uruguaio Eduardo Galeano, não é filha de ninguém, “vinda no bojo de uma couve-flor ou da vontade de Deus, que fez os pobres preguiçosos e burros”, mas fruto da concentração das riquezas produzidas pelo trabalho de todos (as) nas mãos de pouquíssimas pessoas. João Pedro Stedile, do Movimento dos Sem Terra, nos conta que, no começo do século XXI aproximadamente 15 milhões de pessoas estavam sendo beneficiadas diretamente pelo atual modelo de organização da produção e da distribuição de riquezas no Brasil, enquanto mais de 150 milhões tinham uma parte significativa do fruto de seu trabalho roubado, o acesso a educação e ao trabalho formal, saúde, habitação e lazer bloqueados, precarizados ou ameaçados.
O pesquisador norte-americano John Kenneth Galbraith nos ensina que, em sociedades formadas por minorias “ganhadoras” e maiorias “perdedoras”, como a brasileira, há que se presumir que os (as) poucos (as) satisfeitos (as) com o atual estado das coisas defendam, consciente ou inconscientemente, a permanência daquilo que desfrutam e desenvolvam ações, elaborem teorias e doutrinas que procuram legitimar e naturalizar seus privilégios. Em recente entrevista ao jornal Diário de Santa Maria, o presidente da Câmara do Comércio, Industria e Serviços da cidade (Cacism), José De Nardin, ao expor suas opiniões relacionadas à participação dos empresários nos governos, nos deu um exemplo claro de alguns dos interesses dos “satisfeitos” hoje.
Segundo este senhor, que dirige uma empresa que comercializa alimentos, é fundamental a participação dos empresários nos governos porque “o empresário tem uma filosofia diferenciada. Ele trabalha com metas, com parâmetros. Já o político, normalmente, cede a pressão popular”. [4] Mas porque é tão conveniente para a minoria “satisfeita”, que os governos sejam controlados por eles (as), sem interferências populares?
Esta forma de compreender a sociedade, de fato, não é nova, remonta as origens do capitalismo e encontra suas raízes no pensamento liberal, cujo principio central é o de que todas as atividades humanas funcionam melhor quando submetidas às regras do mercado, à lei da oferta e da procura. O educador português Boaventura de Sousa Santos argumenta que desde a segunda metade do século passado estamos sendo submetidos a uma radicalização desta idéia na prática em nível internacional, uma vez que empresários, grandes corporações, banqueiros e especuladores financeiros submetem à sociedade no seu todo a lei do valor, convertendo todas as relações sociais em relações de compra e venda, a fim de maximizar seus benefícios individuais em um processo que vem sendo chamado de globalização neoliberal.
A busca pela maximização dos níveis de lucro pelas elites, embora venham ocorrendo de formas diversificadas em diferentes partes do mundo, têm alguns traços em comum. Para o educador brasileiro Alan Buzzatti, a estratégia central das elites vem se caracterizando pela ampliação dos níveis de exploração dos trabalhadores (as) através da ampliação das jornadas de trabalho, da introdução de novas formas de organizar a produção que dispensam multidões de trabalhadores (as), do ataque brutal aos direitos trabalhistas e da redefinição do papel do Estado no desenvolvimento econômico e social, principalmente através de isenções fiscais para grandes empresas e da privatização de empresas públicas.
Como nos lembra o educador norte-americano Peter Mclaren, é através destas estratégias que empresas como a Nike conseguem ampliar enormemente suas taxas de lucro reduzindo o valor de produção de um tênis para uma média de 70-80 centavos de dólar, a partir da exploração de trabalhadores (as) na Indonésia, e os vendendo a cerca de 120 dólares nos Estados Unidos. Não é muito diferente a situação da empresa General Motors no estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, que tem uma renúncia fiscal de 350 milhões de reais em um estado que nos últimos 10 anos deixou de cobrar de grandes empresas 4,5 bilhões em impostos. [5]
Isto é, o controle ferrenho, incondicional e totalitário do aparelho estatal pelos “satisfeitos” se faz necessário porque a maximização dos lucros das grandes corporações depende da capacidade destes Estados regionais em disciplinar a força de trabalho, enfraquecer as organizações dos trabalhadores (as), promovendo a “estabilidade”, enfim, que só pode ser conquistada através da extirpação das “pressões populares”, como diria o senhor De Nardin. Como demonstrou o caso da guerra do Iraque, como tantas outras empreitadas sanguinárias contemporâneas, como os recentes acontecimentos no Haiti e no Paquistão, o uso da força militar não será descartado para tais objetivos.
Neste contexto, não é difícil entender porque o governo do estado do Rio Grande do Sul empreende um projeto educacional no qual os (as) educandos (as) educadores (as) e funcionários (as) de escola são desvalorizados (as), o transporte escolar precarizado, as bibliotecas e laboratórios fechados e com a previsão de até cinqüenta educandos (as) por turma, mesmo que estes sejam de séries diferentes, sob o argumento de que não há verbas para educação. Não há dinheiro para educação, assim como investimento em saúde e segurança pública porque, entre outras coisas, o projeto de gestão do Estado dos “satisfeitos” prevê que as grandes empresas, os ricos, não devem pagar impostos, o que explica a preocupação do presidente da Cacism sobre a necessidade de que os governantes não cedam “as pressões populares”.
A sanha das grandes corporações e dos especuladores financeiros das economias centrais pela ampliação de suas taxas de lucro, impondo suas regras aos países da periferia com a conivência das elites locais que aceitam o papel de sócias menores submetendo aparelhos Estatais regionais aos ajustes neoliberais teve como desdobramento uma ampliação do número de países considerados extremamente pobres de 25 para 48 entre 1971 e 2000. Nos últimos 20 anos, o número de africanos em estado grave de desnutrição passou de 91 milhões para 186 milhões, o que expressa a dimensão dos efeitos sociais do neoliberalismo.
No Brasil, principalmente a partir da segunda metade do século XX, o acelerado processo de industrialização e a mecanização dos latifúndios exigiu que milhares de famílias se deslocassem das áreas rurais para as urbanas, em busca de melhores condições de sobrevivência, ao mesmo tempo em que capitães (as) da indústria, executivos (as) de corporações multinacionais e latifundiários (as) passaram a pressionar os governos para que estes reduzissem ou simplesmente deixassem de cobrar impostos dos (as) ricos (as), comprometendo os investimentos públicos em saneamento, saúde, educação etc. Hoje 82% da população brasileira, 140 milhões de pessoas, vivem nas cidades convivendo com o desemprego e com a falta de infra-estrutura mínima para a sobrevivência. Neste contexto, o quadro não poderia ser outro: durante os anos 1990, nas oito maiores regiões metropolitanas do país as favelas cresceram 30%. [6]
O educador brasileiro José Clóves de Azevedo avalia que as conseqüências da crescente concentração de riquezas nas mãos de uma pequena parcela da população têm provocado diferentes formas de reações, que variam desde o ressurgimento de movimentos conservadores à radicalização de mobilizações progressistas. De fato, viemos assistindo ao aumento de movimentos racistas, fundamentalismos religiosos, à perseguição de homossexuais, mendigos e imigrantes, a atuação de grupos de extermínio de minorias e a tentativas de criminalização de movimentos sociais populares ao mesmo tempo em que há uma reorganização em nível internacional de organizações críticas ao capitalismo, em defesa da livre orientação sexual, do meio ambiente, a favor de reformas urbanas e agrárias, de novas formas de produzir e distribuir as riquezas sociais etc.
É no bojo deste segundo leque de mobilizações da atualidade que encontramos as bases sociais e os princípios políticos do Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial de Educação. Assim, a reflexão sobre o caráter e os desafios colocados a estas movimentações são pré- requisitos para qualquer discussão séria relacionada ao FME como uma expressão destas no campo educacional.
De Seattle à Santa Maria: os caminhos da construção de um outro mundo possível.
Em dezembro de 1999 a Organização Mundial do Comércio realizou uma conferência em Seattle, nos Estados Unidos, para a qual foram convidados representantes de governos e entidades empresariais de diversos países. O encontro, que ficou conhecido como a “Rodada do Milênio”, pretendia estabelecer um acordo entre as diversas nações para que as grandes corporações e os especuladores financeiros ampliassem sua autonomia em relação aos diversos Estados nacionais para realizarem seus negócios sem as inoportunas “pressões populares”.
Durante a conferência, mais de 40 mil manifestantes de diversas organizações reuniram-se para exigir “abaixo a globalização”. Eram ambientalistas, desempregados, estudantes, sindicalistas, imigrantes, defensores (as) da livre orientação sexual, entre outros, unidos por uma causa em comum: a denúncia da globalização neoliberal como instrumento de exploração, como sistema econômico e social fundado na degradação do meio ambiente e na opressão dos seres humanos.
A repressão à manifestação foi violenta. A polícia foi acionada para reprimir a movimentação que exigia “abaixo a globalização”. Mais de 600 pessoas foram presas e centenas feridas. A violência com que foram tratados os manifestantes antiglobalização neoliberal foi tamanha que chocou a opinião pública em todo o mundo e, no dia 5 de dezembro de 1999, o encontro da Rodada do Milênio terminou sem que suas propostas fossem encaminhadas e os organizadores do evento pediram desculpas publicamente pela repressão brutal que impingiram aos manifestantes.
O levante antiglobalização neoliberal de Seattle constitui um marco para as lutas contra as diversas formas de exploração e opressão da atualidade, e foi seguido de diversas outras manifestações em diferentes locais do planeta. Em fevereiro de 2000, na Tailândia, militantes de diversas organizações foram às ruas protestar contra a globalização neoliberal durante a 10ª Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento; em abril, cerca de 10 mil manifestantes foram a Washington, nos Estados Unidos, exigir o perdão das dívidas dos países pobres ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional; em junho, em Windsor, no Canadá, mais uma onda de protestos com reivindicações semelhantes dirigiu-se para a 30ª Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, sendo duramente reprimida por cerca de 4 mil policiais.
Tais eventos tornaram pública a emergência de uma série de experiências que vinham sendo empreendidas no mundo inteiro por sindicatos, grupos indígenas, movimentos sociais, igrejas, grupos de intelectuais, organizações não-governamentais, governos e grupos partidários que, através de diferentes formas de organização e expressão social vinham fazendo um contraponto a globalização neoliberal. De uma forma geral, tais experiências revelaram ao mundo inteiro a existência de movimentações crescentes que se apresentavam contrarias a globalização em curso e que se caracterizavam sobretudo pela diversidade de interesses e formas de expressão e pela ausência de um projeto unificado para a superação do neoliberalismo.
Os levantes em Seattle, na Tailândia, em Washington e em Windsor, bem como a emergência de experiências de governos locais e regionais que se contrapunham ao neoliberalismo e, assim, a idéia de que os governos não devem ceder “as pressões populares”, incentivaram um conjunto diverso de organizações de todo o mundo a estreitarem relações e a construírem um espaço de discussão que amadurecesse um processo de resistência internacional a globalização em curso a partir da troca de idéias e da promoção de ações comuns. O desdobramento desta articulação foi a construção do Fórum Social Mundial organizado por milhares de sindicatos, organizações não-governamentais, governos democráticos e populares e movimentos sociais a partir de 2001, como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial, evento financiado por cerca de 1.000 multinacionais e que reúne empresários e governantes de diversos países anualmente, desde 1991.
Como destaca a educadora brasileira Lúcia Camini, o Fórum Social Mundial (FSM) constitui uma “explosão de idéias em todas as áreas na direção de apontar outro caminho ao modelo capitalista global neoliberal em curso no mundo aonde o lema ‘Um Outro Mundo é Possível’ sintetiza seus objetivos”. Desde 2001 já ocorreram sete edições do evento em países como o Brasil, a Índia, a Venezuela e o Quênia, além de diversas atividades descentralizadas, como o Pré-fórum Social Mundial e o Pró-fórum Social Mundial realizados na cidade de Santa Maria em 2004, a partir de uma iniciativa do Práxis - Coletivo de Educação Popular junto aos movimentos sociais que compõe a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) no município.
Acima de tudo, as experiências das sete edições dos FSM expressaram os desafios que estão colocados para aqueles grupos interessados na construção de uma sociedade pós-neoliberal, fundada em relações internacionalistas pautadas pela solidariedade e não pela exploração e a opressão. De forma especial, demonstram que as alternativas exigem a construção de caminhos que não são apenas econômicos ou políticos, mas que valorizem dimensões geográficas, jurídicas, étnicas, religiosas, culturais e lingüísticas, entre outras. De certa forma, o próprio FSM expressa este mosaico de questões de forma positiva, bem como a importância da radicalização da democracia de base, de formas horizontais de exercício do poder para a manutenção e reprodução do próprio evento como um espaço de construção da unidade na diversidade.
Estes elementos, que expressam as bases políticas do Fórum Social Mundial estão sintetizados em sua Carta de Princípios quando indica que esta movimentação internacional “se opõe ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo”, se contrapondo, assim, “a um processo de globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade de governos nacionais”. A carta indica ainda que o FSM “é um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário” que valoriza a “diversidade de gênero, etnias, culturas, gerações e capacidades físicas” desde que respeitem os princípios de solidariedade internacionalista entre os seres humanos e entre estes e a Terra. Na mesma perspectiva, o texto é enfático ao indicar que “não poderão participar do Fórum representações partidárias nem organizações militares”, sendo permitida a participação em caráter individual de “governantes e parlamentares que assumam os compromissos” da carta. [7]
Foi ao longo das atividades da primeira edição do Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, que diversos educadores (as), militantes da educação popular e de movimentos sociais iniciaram as discussões relacionadas a construção de um fórum mundial de educação, afim de discutir a dimensão educacional deste processo de globalização contra- hegemônica que se deflagrava e que tinha no FSM sua expressão mais dramática. Desde então, já ocorreram quatro edições gerais do FME, sendo três em Porto Alegre e uma em Caracas, além de diversas edições regionais ou temáticas, em Cartagena das Índias, em São Paulo, Córdoba, Santiago, Nova Iguaçu, Buenos Aires, Caracas e Mogi das Cruzes.
Desta forma, o Fórum Mundial de Educação assume a carta de princípios do Fórum Social Mundial e, nos últimos seis anos vem constituindo-se como um importante espaço de troca de experiências, construção de ações conjuntas e de amadurecimento de estratégias educacionais comprometidas com a construção de “um outro mundo possível.” Ao longo destes anos vêm se destacando no fórum discussões relacionadas aos desafios colocados pela globalização neoliberal aos processos educacionais interessados na transformação da sociedade, como expressaram os encontros em Porto Alegre (2001, 2003 e 2004), Córdoba (2005), Nova Iguaçu (2006), Buenos Aires (2006) e em Mogi das Cruzes (2007); principalmente aqueles que vem sendo desenvolvidos por movimentos populares e governos democráticos e populares latino-americanos, como ficou evidente principalmente nos fóruns de São Paulo (2004), Santiago (2005) e Caracas (2006).
Ora, o entendimento de que “um outro mundo é possível” diante do estágio neoliberal do capitalismo, quando extravasado em ações transfigura-se no próprio questionamento e transformação das relações de produção dominantes, das funções do Estado, das relações de poder assimétricas entre homens e mulheres, brancos, negros e indígenas ou mesmo entre as diferentes orientações sexuais e faixas etárias, dos modelos educacionais em curso, da relação predatória que a industria contemporânea estabelece com os povos e com a Terra etc. Neste sentido, quando falamos do caráter dos processos educacionais comprometidos com a globalização contra-hegemônica estamos nos referindo a todas aquelas experiências que, das mais diferentes formas, estão organicamente vinculadas aos esforços individuais e coletivos que vem apontando “qual outro mundo é possível” através da construção de novas perspectivas econômicas, sócio - ambientais, políticas, culturais etc.
Desta forma, os desafios centrais colocados ao Fórum Mundial de Educação não se situam em uma educação fundamentada em dimensões idealizadas do ser humano e da sociedade. Ao contrário, situam-se no desvelamento dos mecanismos concretos de exploração e opressão e na materialidade das experiências sociais de resistência historicamente construídas pelos (as) explorados (as) e oprimidos (as) cotidianamente.
Como as vivências do Fórum Social Mundial e do próprio Fórum Mundial de Educação vem apontando, felizmente não há soluções prontas e acabadas para os dilemas educacionais colocados aos movimentos contra-hegemônicos da atualidade. Constituir dinâmicas que promovam o intercâmbio de propostas e experimentações e o desenvolvimento de ações conjuntas entre a diversidade de movimentos e de formas de expressão é, sem dúvida alguma, o desafio central do Fórum Mundial de Educação.
Educação e Economia Popular e Solidária: uma articulação necessária.
As questões relacionadas a construção de formas alternativas de organizar a produção e a distribuição das riquezas construídas socialmente e de gestão do Estado a partir de uma perspectiva democrática e popular, em contraponto ao capitalismo, vem sendo objeto relevante de discussão desde o “assalto ao céu”, com a Comuna de Paris, em 1871. A experiência fugaz dos trabalhadores (as) franceses, de apenas 72 dias, demonstrou na prática, por seus erros e acertos, a centralidade da radicalização democrática na gestão das empresas e do Estado para a construção de alternativas ao capitalismo seja através da entrega das fábricas abandonadas ou paralisadas as cooperativas populares ou da constituição de conselhos setoriais eleitos democraticamente para a gestão do aparelho estatal – isto é, a construção de instrumentos que potencializem a autogestão, o exercício horizontal do poder pelos (as) trabalhadores (as).
Ao longo do século XX, experiências de busca da autogestão em espaços estatais e/ ou produtivos foram empreendidas de diferentes formas, níveis de radicalização e períodos, como nos primeiros anos da Revolução Russa (1917); em alguns dos levantes populares contrários ao “stalinismo”, como na Hungria (1956) e na Polônia (1980); na revolução em Espanha (1937); no levante da França (1968); nas revoltas em Portugal (1974) e na experiência de um governo popular no Chile (1970). Às vésperas do século XXI, estas energias emergiram de diferentes formas no Movimento Zapatista em Chiapas, no México; no Movimento Tupac Amaru, no Peru; na Intifada nos territórios ocupados, na Palestina; na re-emergência das organizações operárias na Coréia do Sul; no Movimentos dos Sem Terra, no Brasil; entre outros tantos.
Nos últimos anos, a ascensão da economia popular e solidária e do chamado novo cooperativismo, por um lado, e de experiências de governos locais, regionais e nacionais vinculados ao campo democrático e popular, principalmente na América Latina, por outro, recolocam a discussão relacionada ao desenvolvimento de formas alternativas de gestão do processo produtivo e do Estado como chaves para a crítica ao capitalismo e o apontamento de “qual outro mundo é possível”. As possibilidades de estabelecimento de uma articulação orgânica entre estas experiências e os processos educacionais, ao que tudo indica, ocuparão um lugar de destaque no Fórum Mundial de Educação em Santa Maria, uma vez que o Comitê Municipal definiu o título “Educação, Economia Solidária e Ética Planetária” como tema do FME- 2008.
De fato, nos últimos anos, emergiram em níveis locais, regionais e nacionais governos comprometidos com o campo democrático e popular na América Latina, das mais diversas formas, como expressam as experiências na Argentina, no Brasil, na Venezuela, no Uruguai, na Bolívia, na Nicarágua e no Equador. Tais experiências vêm indicando, de forma bastante diversificada, que não há espaços para idealismos ou automatismos na superação do neoliberalismo, principalmente por deflagrarem avanços progressistas em algumas áreas e manterem ou mesmo retrocederem em outras, através da manutenção ou construção de estratégias marcadamente conservadoras.
Neste contexto, cabe ao Fórum Mundial de Educação amadurecer uma avaliação crítica das formas como tais governos vem empreendendo reformas que potencializem de fato uma superação do neoliberalismo, principalmente no que tange as formas de gestão do aparelho estatal, de sua relação com o processo produtivo e, obviamente, com as experiências educacionais.
Como destaca o educador brasileiro Alan Buzzatti, diversas iniciativas de gerar trabalho e renda vêm sendo criadas a partir dos anos 1980, constituindo tanto “alternativas diante da crise estrutural do desemprego e das urgências por ele provocadas” como “parte da construção de um projeto de transição dirigido pelos trabalhadores organizados”. Os sujeitos destas ações, em geral, são trabalhadores (as) desempregados ou que nunca tiveram sequer o acesso a um posto de trabalho formal em toda a sua vida e o seu diferencial esta na forma como se dá a organização do trabalho, isto é, a gestão do empreendimento.
Uma experiência de economia popular e solidária caracteriza-se, sobretudo, por assentar-se em princípios democráticos, de igualdade e solidariedade entre os sujeitos na definição dos rumos do empreendimento e na divisão da renda gerada através do trabalho coletivo. Desta forma, são empreendimentos aonde não existe a figura do patrão, sendo todos os trabalhadores (as) donos (as), sujeitos associados democraticamente para a geração de trabalho e renda.
O mapeamento, “Atlas da Economia Solidária no Brasil”, realizado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES/TEM) em parceria como o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) nos permite uma dimensão destas experiências no país atualmente ao indicar que 70% dos 14.954 empreendimentos solidários existentes foram criados entre 1990 e 2005 e que deles participam um milhão e duzentos e cinqüenta mil trabalhadores (as), por meio de múltiplas formas de organização, nas quais predominam as associações, com 54%, vindo em seguida os grupos informais com 33% e as cooperativas com 11%. Em Santa Maria, sem dívida alguma, a maior expressão destas empreitadas é o projeto Esperança/ Cooesperança que a 30 anos, vem potencializando a experimentação de formas alternativas de produção e comercialização, e tornando-se uma importante referência internacional nas discussões relacionadas à economia popular e solidária.
Hoje há registros de empreendimentos autogestionários em diferentes setores da economia brasileira, desde pequenos empreendimentos domésticos à metalurgia, têxtil, coureiro-calçadista, plástico, alimentação, agroindustrial, construção civil, serviços, entre outros. Em outras regiões do planeta, ações semelhantes vem sendo empreendidas e procurando articular tais empreendimentos autogestionários aos processos educacionais, protagonizando uma série de experiências que contribuem para as discussões relacionadas ao papel da educação em processos de globalização contra-hegemônica.
Neste sentido, é emblemático o caso da Mondragón Corporação Corporativa, criada em 1965 e que pertence a cerca de 30 mil trabalhadores (as) no País Basco. Constituindo um complexo multinacional, o empreendimento é constituído por uma série de fábricas, supermercados e um banco, gerando uma renda anual estimada em 18 bilhões de dólares. Esta cooperativa organizou uma universidade que constitui não apenas uma instituição de ensino para os (as) trabalhadores (as) e seus familiares como também um espaço de produção de ciência e tecnologia articuladas as necessidades da economia não-capitalista.
Na mesma perspectiva, são exemplares os casos dos chamados Bachilleratos Populares construídos em algumas fábricas recuperadas na Argentina nos últimos anos, como no caso da Metalúrgica IMPA e da Maderera Córdoba. Tais trabalhadores (as) autogestionados constituíram espaços de formação para eles (as) e para as comunidades onde estão inseridos, nos quais procuraram estabelecer um dialogo entre as comunidades e os espaços produtivos cooperativados, bem como entre o ensino e as especificidades da produção não-capitalista, principalmente através de estruturação de cursos secundários para jovens e adultos (as) que privilegiam conhecimentos relacionados ao cooperativismo e a micro-empreendimentos. Segundo o educador argentino Ezequiel Fieri, da Cooperativa de Educadores e Investigadores Populares, o fato de a maior parte dos (as) alunos (as) dos Bachilleratos serem mulheres tem destacado as particularidades da exclusão entre os diferentes gêneros sexuais, bem como a necessidade de construção de propostas educacionais que levem em conta tais características.
Nos Estados Unidos, assistentes de saúde afro-americanos e latinos construíram e dirigem democraticamente a Valley Care Cooperative, em Waterbury, e também nos dão um exemplo dos desafios colocados a educação contra-hegemônica. Ao longo dos desenvolvimentos dos trabalhos de saúde preventiva junto a trabalhadores (as) negros (as) e latinos (as) idosos (as), o grupo passou a empreender também cursos de alfabetização, tomando por referência as propostas de Paulo Freire e destacando a necessidade de construção de metodologias que valorizem as diferenças etárias, étnicas, lingüísticas e culturais.
No Brasil, a articulação entre universidades e empreendimentos autogestionários tem encontrado nos projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão um formato construtivo para o dialogo entre educação e economia popular e solidária. É o caso, por exemplo, da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criada em 1995, e que vem inspirando o desenvolvimento de outros espaços que potencializem a qualificação dos empreendimentos de economia popular e solidária através da formação de profissionais e a produção de ciência e tecnologia comprometidos com os princípios da democracia, da solidariedade e da preservação do meio -ambiente.
Ora, se o neoliberalismo tem como principio um tipo de organização social aonde a participação popular na definição dos rumos da vida comunitária é concebida como um problema a ser combatido, a criação de mecanismos que submetam o Estado e o mercado ao controle dos (as) explorados (as) e oprimidos (as) constituem elementos basilares, dos quais não devemos, em nenhuma hipótese, abrir mão em qualquer proposta que se pretenda contra-hegemônica. Imediatamente, isto não significa outra coisa senão potencializar a autogestão popular nos mais diversos espaços da sociedade, de forma que sejam construídas as bases para que a democracia direta, horizontal, substitua o poder do Estado burguês e do mercado.
Nesta perspectiva, é necessário que sejam problematizadas a fundo as bases materiais e simbólicas das experiências autogestionárias nos campos educacional e produtivo e os seus desdobramentos. Bem como que sejam discutidos os conhecimentos construídos nestas experiências, bem como a forma como estas vem se relacionando entre si, com o Estado e com o mercado.
Fórum Mundial de Educação em Santa Maria: Educação, Economia Solidária e Ética Planetária.
As discussões desenvolvidas pelos grupos integrantes do Comitê Municipal do Fórum Mundial de Educação de Santa Maria definiram o título “Educação, Economia Solidária e Ética Planetária” como tema central do evento do FME- 2008. Sem dúvida alguma, afora a legitimidade da região para o desenvolvimento dos diversos eixos que envolvem esta temática, principalmente pelo amadurecimento de experiências de educação popular e economia popular e solidária empreendidos pelos movimentos sociais da região nos últimos anos, esta opção deflagra também um sentido político bastante especifico entre o conjunto das experiências do Fórum Mundial de Educação até então.
Refiro-me a centralidade do trabalho, das formas de organizar a produção e distribuição das riquezas socialmente construídas, como ponto de partida para as análises e a construção de alternativas à globalização capitalista em sua fase neoliberal, inclusive no que tange as experiências educacionais neste processo. Neste contexto, as experiências de economia popular e solidária requerem uma correspondente educacional que lhes garantam um suporte no que tange a produção de ciência e tecnologia e a formação profissional que privilegiem o respeito ao ser humano e ao meio-ambiente, que tenham como princípios a radicalização da democracia e a solidariedade.
Isto é, se estamos de fato interessados na construção de relações sociais que apontem para uma nova ética planetária, a valorização dos espaços locais que privilegiam o protagonismo individual e coletivo nas ações que buscam a construção de relações pautadas pelo humanismo, pela solidariedade e pela justiça como instrumentos basilares de uma globalização contra-hegemônica, principalmente nos campos educacional e produtivo, deve ser um posicionamento inicial do Comitê Municipal do Fórum Mundial de Educação. Como havíamos nos referido no começo deste texto, os primeiros instrumentos para isso já estão dados, pois não são outra coisa senão a abertura para o dialogo, o espírito da curiosidade e o desejo de aprender e fazer juntos – resta, agora, potencializarmos estes elementos ao máximo, pois são eles que nos indicaram o ritmo e as próximas dinâmicas deste trabalho coletivo.
[1] Este texto foi construído na primavera de 2007 com o intuito de contribuir para as discussões relacionadas a construção do Fórum Mundial de Educação de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, que ocorrerá em maio de 2008. De uma parte, representa o amadurecimento de algumas discussões que viemos empreendendo junto a diversos colegas e companheiros (as) militantes de movimentos sociais rurais e urbanos nos últimos anos, relacionadas ao papel da educação em experiências sociais contra-hegemônicas, bem como uma re- escrita do texto “A perspectiva autogestionária praxiana e a educação da e pela nova geração política: bases políticas e desafios atuais”, elaborado como uma contribuição para o desenvolvimento dos trabalhos do Práxis - Coletivo de Educação Popular no primeiro semestre de 2007.
[2] Educador Licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Atuais espaços de atuação: Educador e membro da coordenação do Práxis - Coletivo de Educação Popular; aluno do Curso de Especialização em Gestão Educacional e do Programa de Mestrado em Educação da UFSM; pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Práticas Educacionais de Jovens e Adultos (GPPEJA/CE/UFSM); membro da coordenação da Comissão de Metodologia e Temática do Comitê Municipal do Fórum Mundial de Educação. Contato: santiagohist@hotmail.com
[3] Estes dados foram apresentados publicamente por Jean Ziegler, relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito a Alimentação, em 2006.
[4] A este respeito ver a reportagem “Filiações Empresariais”, de Jaqueline Silveira, publicada no jornal Diário de Santa Maria na edição de 27-28 de outubro de 2007.
[5] Estas estimativas são apresentadas no texto “A Crise do Rio Grande do Sul tem DNA Neoliberal”, elaborado por Raul Pont e publicado no periódico “Argumento”, em 2007.
[6] Estes números são apresentados por Raul Carrion no “Caderno da Reforma Urbana e da Habitação Popular”, de 2007.
[7] Trechos extraídos da Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, aprovada em 10 de junho de 2001.
Algumas referências bibliográficas:
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